segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Vento Passado de Agosto


Vento Passado de Agosto
Vento vasto do encantamento do teu rosto.
O espiríto mágico da porta dos fundos que chega
Eu sabia que virias, criança.

O Teatro, o piano, a criança.
O cheiro do ar relativo como uma dança

Suspenso o estado do tempo
Não eras tu mesmo o túmulo convulsivo da minha voz
Não era
És uma criança que molda o senhor estado dos meus olhos. Agora.

O Teatro, o piano, a criança.
O cheiro do ar relativo como uma dança

Confesso que sejam eles mesmos olhos de frutos
Aperriados demais
E tu não sabes o poder do sagrado?
És uma graça. Sou uma graça.

Doei o ódio às carcaças do mundo
Para te conceder o amor como um fluxo
Perdoe-me, mas eu não sei de nada.
E talvez seja por isso que eu seja também uma criança que te ama.

Um sorriso.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

De Cordas


Desde o átrio longo o cheiro exarcebado
No contínuo recebimento consenti ser ele mesmo
Apareceria ao lado esquerdo da porta
Bem nos fundos com exatos aromas de madeira antiga
Dedos de cordas antigas
Do fascínio exato do meu sangue congelando
Pus no chão meu corpo a venerá-lo o seu sem ninguém
Vazio e solitário
É um amante dos meus olhos intactos inertes calados
Lábios meus calados
Tristeza que à alma tracejava tão bela e amarga desta maneira
Que ao ver-te imóvel e exato
Um choro sã desabrochou
Calei-me puramente com tudo o que ele havia retirado
Retirou-me tudo o que havia
E com os meus dedos maltratados dei-me num ar à moça das fotos
Eu gostaria de ficar aqui até o findar da respiração
Não precisas tu ficares
Deixe-me ficar com ele até os meus dedos amofinarem junto às cordas
Que hão de se dispersar nos ares
Não se preocupe comigo
É isto que eu amo como o ar mais verdadeiro e calmo de mim
É isto que eu amo
Desde o adorável momento que soou a harmônica sonoridade
Distribuída aos ouvidos na infância
Sossegue-me com os olhos e vá
Diga a quem quer que seja que é a única tristeza desdenhada de beleza
Cuja cura é devolvida sem procurá-la de um modo tão dissimulado
Não a procuro pois a de vir
Deixe-me aqui porque o dia hoje concede brandura
E um choro emotivo quase posto com um vômito

domingo, 15 de agosto de 2010

O que é isso?



- Eu deveria não ter nascido com um coração!

- Vamos, você está com os olhos embaçados. Venha que eu te levo.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Contorno da Noite


Minha mãe, não me acorde.

À noite os bondes andam, os pés progridem por entre os trilhos com aroma de flores.
Pinta-se poesia em nossos dedos
À noite o canto dos homens perecem e o meu caos é bem menor quando na sonata do dia

De dia eu durmo
Minha mãe, não me acorde.
De dia o mundo acontece, mata-me sabê-lo. Definho.

À noite eu me inspiro e convivo
Com o estado de cura que os cantos me fazem
Eu vivo, assisto vossos olhos descansarem.
Enquanto rompemos com o medo da condição de si
Enquanto sopramos estrelas no ar
Da influência exercida dos astros
Nós somos um caos, meu bem.

E tu deverias imaginar a dimensão do nosso egoísmo
Correndo assim como quem busca os ares dispersos
E de tanto segurar-se em meu coração
Este vago chão frio que pisas aprontar-se-á graúdo

"Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo."
(Trecho de Poema de Sete Faces de Drummond)

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Insônia


A porta da geladeira aberta,
a noite e o chão,
frios,
e o molde das horas estranhas.
Insônia
Espalhado no ar o frasco de sombras
Você é que é esta dança
Parece-se, definitivamente, muito com ela.
Minha insônia
Os olhos em atrito
Suplanta de cor que o cegue
Pede, invoca e chora.
É só um doce pecado
Doce insônia esta
Relativa insônia

sábado, 7 de agosto de 2010

Ensaio Sobre a Cegueira


... O medo cega, disse a rapariga dos óculos escuros, São palavras certas, já éramos cegos no momento em que cegamos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos, Quem está a falar, perguntou o médico, Um cego, respondeu a voz, só um cego, é o que temos aqui. Então perguntou o velho da venda preta, Quantos cegos serão precisos para fazer uma cegueira. Ninguém lhe soube responder. A rapariga dos óculos escuros pediu-lhe que ligasse o rádio. talvez dessem notícias. Deram-nas mais tarde, entretanto estiveram a ouvir um pouco de música. Em certa altura apareceram à porta da camarata uns quantos cegos, um deles disse, Que pena não ter trazido a guitarra. As notícias não foram animadoras, corria o rumor de estar para breve a formação de um governo de unidade e salvação nacional...

José Saramago

- Trecho retirado do livro que tem o mesmo título acima.

Obs.: As palavras parecem um pouco embaralhadas, mas é o modo como o autor escreve.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Asco, ardo!


O asco presente que me há não é culpa minha
E por que Julgaria vós por esta lástima de rua que posso andar?
De quem é a culpa?
Se hoje mesmo dispusessem-me desta pergunta estaria mais convicente do estado do mundo
Sobretudo do ser humano a perder-se dentro de si mesmo
Como um istrumento de forma invariável que se petrifica com contos de amor
Não me reconheço como um decente que exibe os olhos a enxergar a clareza e o arranjo social cômodo
Não sei definitivamente de nada que me possa perguntar
Nem de quem seja a culpa
Deste tão absurdo volume de bens que suplantam nas mãos de uns e perpassam somente às mãos de outros
Nem se quer do estrago da educação merecida destas crianças que volta e meia assombram-se na escuridão de meia-noite
Não sei de quem seja a culpa
O asco, o fado, o cansaço.
Doar-se demais é besteira
Assim como o prezado sentimento que há
Ninguém pode reconhecer
Isto é só um instrumento de forma invariável que se petrifica com atos de bem

E eu?
Sou apenas um ser covarde, um inerme que morre de amores.